18.5.14

Parada Consolação


Por trabalhar no sábado e folgar às segundas, vivo um dia atrasada em meu relógio mental. Estranho a quinta-feira com cara de quarta. Para fugir de eventuais gafes, carrego um mini-calendário da Congás com imã de geladeira atrás para checar em que dia estou.

Entro no ônibus Terminal Santo Amaro que leva toda a minha juventude para uma faculdade nada acolhedora, de salas inóspitas e pessoas irregulares. Atento ao barulho do cartão de estudante encostando na máquina. O sorriso malicioso do cobrador e a habitual cara de tacho que os velhinhos fazem, quando sobem apressados pelos degraus altos, confundindo joelhos enrugados com quinas sujas de sapatadas.
Dentro dessa rotina metódica, a única gratificação era saber que dali a poucas horas estaria estirada em minha cama decorada há 7 anos com um cobertor da Disney.

Naquele dia levava um Mario Benedetti na mochila.  Confesso, em nada me empolguei na leitura. Estava absorta pela órbita do livro que não me prendia-nem-entediava até ser interrompida por um pacote de Doritos doloridamente amassados entre os dentes postiços de uma senhora.
-a moça onde eu trabalho só come peixe cru. Dai o jeito é descer no mercadinho pra comprar essas besteirinhas.- ela disse. 
-a moça é japonesa?- perguntei.
-ela é. E só come coisa crua.
Ela fez careta quando terminou a sentença. Fechou os olhos até suas rugas os engolirem. Reparei na única mão limpa. Tinha unhas curtas e dedos mal tratados pelos produtos químicos. Li no crachá do condomínio o seu nome: Shirley.

Seu cabelo era avermelhado. Pelo tom forte e esquisito, conclui que pintava em casa, longe dos preços de salões de beleza e suas longas conversas sobre maridos e filhos. Sorri sutilmente.
E ela começou a falar como se me conhecesse há anos, como se tivesse me embalado em uma infância perdida entre fotos vestida de marinheira ou cowboy. Falou comigo como se eu fosse a sua confidente mais íntima, como se aquele banco do ônibus fosse a saleta e eu, o padre, ouvindo sua confissão, simpatizando com sua lamúria, perdoando-a. perdoando-a pelas mãos alaranjadas de corante industrial, pelos dentes postiços, pelo esmalte da unha descascada. Compreendendo suas roupas listradas de lurex, seu tênis comprado em alguma galeria da Zepa.

Não ouvi. Inventei uma história pra mim e fingi que tudo aquilo que ela me falava me importava.  Não importava. Quis roubar sua história, seu desgosto por sushi, apreço pelo orgulho de ter 3 filhos com nomes comuns. Pedro, Joana e Maciel. Sua fé na Nossa Senhora Aparecida e o sonho de um dia vender guardanapos com bicos de crochê na garagem de casa que tava “azulejando”. Dei sinal para o ônibus parar e Shirley trocou de lugar para que eu pudesse sair. Acenou com a cabeça e voltou os olhos desinteressados para o Copam.  


Desci na parada Consolação, lá pela altura da Maria Antonia. Esperei o semáforo abrir enquanto tentava lembrar as aulas do dia, pensando se estava ou não com fome ou se tinha ou não guarda-chuva para a garoa que pedia espaço no asfalto lotado de estudantes semi-bêbados. Uma quinta-feira e os bares lotados. Minto. Uma quarta-feira e os bares lotados. 

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