Por trabalhar no sábado e folgar às segundas, vivo um dia
atrasada em meu relógio mental. Estranho a quinta-feira com cara de quarta.
Para fugir de eventuais gafes, carrego um mini-calendário da Congás com imã de
geladeira atrás para checar em que dia estou.
Entro no ônibus Terminal Santo Amaro que leva toda a minha
juventude para uma faculdade nada acolhedora, de salas inóspitas e pessoas
irregulares. Atento ao barulho do cartão de estudante encostando na máquina. O sorriso
malicioso do cobrador e a habitual cara de tacho que os velhinhos fazem, quando
sobem apressados pelos degraus altos, confundindo joelhos enrugados com quinas
sujas de sapatadas.
Dentro dessa rotina metódica, a única gratificação era saber
que dali a poucas horas estaria estirada em minha cama decorada há 7 anos com
um cobertor da Disney.
Naquele dia levava um Mario Benedetti na mochila. Confesso, em nada me empolguei na leitura. Estava
absorta pela órbita do livro que não me prendia-nem-entediava até ser
interrompida por um pacote de Doritos doloridamente amassados entre os dentes
postiços de uma senhora.
-a moça onde eu trabalho só come peixe cru. Dai o jeito é
descer no mercadinho pra comprar essas besteirinhas.- ela disse.
-a moça é japonesa?- perguntei.
-ela é. E só come coisa crua.
Ela fez careta quando terminou a sentença. Fechou os olhos
até suas rugas os engolirem. Reparei na única mão limpa. Tinha unhas curtas e
dedos mal tratados pelos produtos químicos. Li no crachá do condomínio o seu
nome: Shirley.
Seu cabelo era avermelhado. Pelo tom forte e esquisito, conclui
que pintava em casa, longe dos preços de salões de beleza e suas longas conversas
sobre maridos e filhos. Sorri sutilmente.
E ela começou a falar como se me conhecesse há anos, como se
tivesse me embalado em uma infância perdida entre fotos vestida de marinheira
ou cowboy. Falou comigo como se eu fosse a sua confidente mais íntima, como se
aquele banco do ônibus fosse a saleta e eu, o padre, ouvindo sua confissão,
simpatizando com sua lamúria, perdoando-a. perdoando-a pelas mãos alaranjadas
de corante industrial, pelos dentes postiços, pelo esmalte da unha descascada. Compreendendo
suas roupas listradas de lurex, seu tênis comprado em alguma galeria da Zepa.
Não ouvi. Inventei uma história pra mim e fingi que tudo aquilo
que ela me falava me importava. Não importava.
Quis roubar sua história, seu desgosto por sushi, apreço pelo orgulho de ter 3
filhos com nomes comuns. Pedro, Joana e Maciel. Sua fé na Nossa Senhora
Aparecida e o sonho de um dia vender guardanapos com bicos de crochê na garagem
de casa que tava “azulejando”. Dei sinal para o ônibus parar e Shirley trocou
de lugar para que eu pudesse sair. Acenou com a cabeça e voltou os olhos desinteressados
para o Copam.
Desci na parada Consolação, lá pela altura da Maria Antonia.
Esperei o semáforo abrir enquanto tentava lembrar as aulas do dia, pensando se estava
ou não com fome ou se tinha ou não guarda-chuva para a garoa que pedia espaço
no asfalto lotado de estudantes semi-bêbados. Uma quinta-feira e os bares
lotados. Minto. Uma quarta-feira e os bares lotados.
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