Menina em Verde, 2003. Luiz Braga. |
Um conto sujo: belém.
--
Ele era manco.
E os olhos cristalinos absorviam a alma da gente, insaciáveis.
Talvez a cor azul deles fosse isso: nós mesmos.
Amargo, imune de toda pena da nascença. Dizia que a deficiência
não o faria humilde. Sua história de superação não servia para matéria especial
da Veja São Paulo.
1h43m. Era cedo no salão mal cheiroso da Dona Cherri, a
negra de cabelo caracol que roubou uns réis e um sotaque de um gringo que
embasbacou no seu rebolado.
Armando entrou devagar, puxava a perna aos poucos, não
queria ser notado. Topava com o contra piso irregular do salão, mais uma vez, a
perna latejando, arrastava.
De novo e de novo.
Não namorava há anos. Escolhia as vítimas dos flertes em
consultórios odontológicos, salas de espera, qualquer lugar onde o compromisso
fosse inadiável. O mau gosto para as palavras perturbava até os mais céticos
quanto a natureza machista.
Mas não ia em puteiro. Não os de São Paulo. Criou uma
paranoia absurda, era crente que encontraria as damas no mercadinho comprando
conservas, cinema ou até mesmo na terapia. E ela contaria, ah contaria.
Que o broxa da perna falhada apareceu lá no puteiro, Vê se
pode, pra tentar a sorte com alguma Amélia da vida. A cena se repetia.
Foi que um dia, abriram uma vaga pra supervisor de projetos
públicos. Candidatou-se. Tudo do mais pobre teatro para que pudesse ocupar um
cargo junto com um antigo engenheiro que lhe devia favores.
Avistou a mocinha magra. O top azulado mal cobria os bicos
dos seios, a saia de retalho vinha de alguma doação da igreja. O cabelo
frisado, oxigenado entregava a falsa identidade. Não tinha mais do que uns 20
anos.
Armando puxou Isadora pela saia, enquanto ainda lhe era
tempo. O corpo medíocre e subnutrido reagiu.
Em pânico, Isadora agiu avidamente. Nas últimas semanas as
ruazinhas de Macapá transbordavam de cafetões em busca de meninas fujonas. Era
um tempo ruim.
Olhou a perna inútil. Arfou. Os músculos relaxaram. Um sinal
de que estava tudo bem, o agressor era indefeso.
“Não pode me segurar assim toda vida”, ela disse.
O medo se transformou
em desprezo. Já havia dito as meninas da pensão: não dou pra coxo.
Mas aquele ano foi magro, o pão dormido era servido sem
manteiga. Tudo encareceu com rapidez: arroz, batata, carne. Até o anticoncepcional,
único meio de preservar a vida não escapou ileso a inflação. A tabelinha virou
uma amiga, enganavam os corpos rígidos e imaturos com calendários de açougues.
Os garimpeiros haviam zarpado dali há tempos. Sustentavam a família
com quatro ou cinco crianças com a mulher faxinando na casa alheia. Pagar puta
pra foder era um luxo para a maioria.
Os olhos dele amargaram nos dela. A careca dele era
lubrificada com suor. A pele paulista era interrompida por manchas douradas de
queimadura. A camisa vermelha brigava com o lugar desleixado, com a temperatura
incongruente.
Botinas pretas, uma delas com um calço para poder se igualar
a outra.
“Quanto vosmecê cobra?” Ele mastigou entre os dentes.
Isadora já tinha ouvido essa palavra, vosmecê. Leu num dos volumes das reinações de Narizinho. Sonhava com
essas histórias.
“até faço, mas o senhor não pode contar pra ninguém.”, ela devolveu.
Ele se fez cabisbaixo.
Rumaram ao quarto 42. As luzes eram esverdeadas. Dona Cherri
acreditava que as luzes coloridas dos barracos disfarçariam as curvas moles e acidentadas
das suas garotas surradas pelo destino.
“te tiro a camisa?” ela perguntou. Percorreu o quarto,
checou as janelas úmidas de calor. Janeiro não dava sossego.
“Sim”. A fala dele veio sem pressa. E depois calou a
madrugada.
As pernas a prendiam debaixo
do sexo mole, cansado. Não era como novela em que o mocinho casava com a sua
namorada da adolescência depois do acidente de carro. A vida não se parecia com
nada naquela altura.
Tudo era doído, minado, intragável. O acaso, a existência,
os olhos que não se miravam. Sofriam feito bichos e não entendiam o porquê. Não
amavam. E não tinham por quê. Custava caro para ele. Custeava a vida para
Isadora.
Armando trocou o dinheiro e deixou sobre a mesa. Virou-se
para o lado, os lábios tremiam. Isadora arrumou a blusa, guardou na bolsa os
sabonetes que saqueou do lavabo. Olhou para o careca que se esvaziara ao seu
lado. Pensou em um futuro as custas do braço direito do engenheiro da maior
obra da cidade. Vislumbrou viagens, idas ao shopping. Os domingos em que se
suportariam. Mentiu:
-Te trago um café.
E saiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"a palavra escrita permanece."