15.12.13

um conto sujo: belém.


Menina em Verde, 2003. Luiz Braga. 

Um conto sujo: belém.
--

Ele era manco.
E os olhos cristalinos absorviam a alma da gente, insaciáveis. Talvez a cor azul deles fosse isso: nós mesmos.

Amargo, imune de toda pena da nascença. Dizia que a deficiência não o faria humilde. Sua história de superação não servia para matéria especial da Veja São Paulo.
1h43m. Era cedo no salão mal cheiroso da Dona Cherri, a negra de cabelo caracol que roubou uns réis e um sotaque de um gringo que embasbacou no seu rebolado.

Armando entrou devagar, puxava a perna aos poucos, não queria ser notado. Topava com o contra piso irregular do salão, mais uma vez, a perna latejando, arrastava.
De novo e de novo.

Não namorava há anos. Escolhia as vítimas dos flertes em consultórios odontológicos, salas de espera, qualquer lugar onde o compromisso fosse inadiável. O mau gosto para as palavras perturbava até os mais céticos quanto a natureza machista.

Mas não ia em puteiro. Não os de São Paulo. Criou uma paranoia absurda, era crente que encontraria as damas no mercadinho comprando conservas, cinema ou até mesmo na terapia. E ela contaria, ah contaria.

Que o broxa da perna falhada apareceu lá no puteiro, Vê se pode, pra tentar a sorte com alguma Amélia da vida. A cena se repetia.
Foi que um dia, abriram uma vaga pra supervisor de projetos públicos. Candidatou-se. Tudo do mais pobre teatro para que pudesse ocupar um cargo junto com um antigo engenheiro que lhe devia favores.

Avistou a mocinha magra. O top azulado mal cobria os bicos dos seios, a saia de retalho vinha de alguma doação da igreja. O cabelo frisado, oxigenado entregava a falsa identidade. Não tinha mais do que uns 20 anos. 
Armando puxou Isadora pela saia, enquanto ainda lhe era tempo. O corpo medíocre e subnutrido reagiu.

Em pânico, Isadora agiu avidamente. Nas últimas semanas as ruazinhas de Macapá transbordavam de cafetões em busca de meninas fujonas. Era um tempo ruim.
Olhou a perna inútil. Arfou. Os músculos relaxaram. Um sinal de que estava tudo bem, o agressor era indefeso.

“Não pode me segurar assim toda vida”, ela disse.
 O medo se transformou em desprezo. Já havia dito as meninas da pensão: não dou pra coxo.
Mas aquele ano foi magro, o pão dormido era servido sem manteiga. Tudo encareceu com rapidez: arroz, batata, carne. Até o anticoncepcional, único meio de preservar a vida não escapou ileso a inflação. A tabelinha virou uma amiga, enganavam os corpos rígidos e imaturos com calendários de açougues.

Os garimpeiros haviam zarpado dali há tempos. Sustentavam a família com quatro ou cinco crianças com a mulher faxinando na casa alheia. Pagar puta pra foder era um luxo para a maioria.

Os olhos dele amargaram nos dela. A careca dele era lubrificada com suor. A pele paulista era interrompida por manchas douradas de queimadura. A camisa vermelha brigava com o lugar desleixado, com a temperatura incongruente.

Botinas pretas, uma delas com um calço para poder se igualar a outra.
“Quanto vosmecê cobra?” Ele mastigou entre os dentes.
Isadora já tinha ouvido essa palavra, vosmecê. Leu num dos volumes das reinações de Narizinho. Sonhava com essas histórias.

“até faço, mas o senhor não pode contar pra ninguém.”, ela devolveu.
Ele se fez cabisbaixo.
Rumaram ao quarto 42. As luzes eram esverdeadas. Dona Cherri acreditava que as luzes coloridas dos barracos disfarçariam as curvas moles e acidentadas das suas garotas surradas pelo destino.
“te tiro a camisa?” ela perguntou. Percorreu o quarto, checou as janelas úmidas de calor. Janeiro não dava sossego.

“Sim”. A fala dele veio sem pressa. E depois calou a madrugada.  
 As pernas a prendiam debaixo do sexo mole, cansado. Não era como novela em que o mocinho casava com a sua namorada da adolescência depois do acidente de carro. A vida não se parecia com nada naquela altura.

Tudo era doído, minado, intragável. O acaso, a existência, os olhos que não se miravam. Sofriam feito bichos e não entendiam o porquê. Não amavam. E não tinham por quê. Custava caro para ele. Custeava a vida para Isadora.

Armando trocou o dinheiro e deixou sobre a mesa. Virou-se para o lado, os lábios tremiam. Isadora arrumou a blusa, guardou na bolsa os sabonetes que saqueou do lavabo. Olhou para o careca que se esvaziara ao seu lado. Pensou em um futuro as custas do braço direito do engenheiro da maior obra da cidade. Vislumbrou viagens, idas ao shopping. Os domingos em que se suportariam. Mentiu:
-Te trago um café.
E saiu.






Nenhum comentário:

Postar um comentário

"a palavra escrita permanece."