26.5.14

conto sujo III: O problema não é com você.

Coletivo Transverso


Amanda era daquelas moças-quase-altas que sabia de cor todas as peças da sessão de moda da Vogue. Chapéu panamá. Calça risca de giz. Jegging. Entre outras quinquilharias que eu nunca ouvi falar.
Tinha um pequeno estoque de chá de amora com rosa silvestre e as vezes aparecia de vestido poá azul marinho (palavra que suguei de seu vocabulário fashion forçadamente) na Mercearia São Pedro para bebericar caipirinha enquanto divagava com propriedade pretensiosa sobre Borges, Varga Llosa e todos esses respeitáveis senhores latino americanos.

Nos meus quase 18 anos, tudo era pretensiosamente sério. O jeito pretensioso como eu arrumava o cabelo, escolhia CD’s na Cultura da Paulista e até mesmo os trocados que eu dava na padoca da esquina. Tudo calculado com fita métrica metafísica, com margem de 2mm para possíveis deslizes.  E sair com uma mulher formada de 23 era tarefa árdua.

Eu, um rapaz de beleza média, que dependia da boa vontade de taxistas e primos motorizados São Paulo a fora, labutava na faculdade de economia, e vez ou outra respondia provocações dos colegas, das namoradinhas dos colegas. Tudo gozação. Sobre como nós trepávamos. Se eu conhecia a galera dela. Como era ser filhinho da mamãe. Duas vezes.

O nosso jogo tinha regras fáceis. Para ela. Amanda parecia existir em uma página da revista Tpm, onde tudo era equilibrado, bonito, versátil. Vez ou outra me lançava um olhar com ares de satisfação para o nosso diálogo “livre e aberto”. Falávamos sobre traição, sexo a três, reencarnação, qual livro do Paulo Coelho nós nunca admitiríamos que tínhamos lido, qual música do Maroon 5 pedíamos na época do Disk MTV com naturalidade quase assustadora.

Eis que numa sessão de cinema da madrugada, para a estreia de um filme moderninho, Amanda levou a nova colega de quarto de uma das suas amigas da faculdade. Para nós, tudo parecia uma desculpa para que a outra colega pudesse, enfim, levar o novo namoradinho do interior para o apê. E assim como todas as suas outras colegas, Amanda conheceu Dani em um grupo chamado “Vagas Apartamento SP” no Facebook, esses locais inóspitos, misturando anúncios de casas com geladeira velhas e campanhas de doação de filhotes.

A presença de Daniela em nossas vidas aconteceu rasteira. Seus olhos castanhos enormes também exalavam seu sotaque carioca. A pele era quase da cor dos olhos, o cabelo com luzes naturais do sol, batendo na cintura. Tinha uma tatuagem da Tinker Bell no ombro. Escondia com os fios loiros. Bagagem da adolescência, dizia.

Em poucos meses, Daniela começou a aparecer bastante nas rodas de conversa. Bonita e simpática, a moça trabalhava em uma loja de surf próximo ao metrô Santana. Não tinha rolinho com nenhum dos caras que frequentavam nossos points. Falava pouco sobre si. Talvez esse fosse o segredo. Ouvia, ouvia, ouvia. Nunca reclamava. O mesmo astral de sempre, contando anedotas sobre os clientes chatos, as patricinhas seguindo a onda do cabelo parafina e o chefe gordo e bronzeado, com seus dreads loiros.

Grudou em Amanda. E quanto mais Dani aparecia nas rodas, nos cinemas, nas festas em casa, mais Amanda se distanciava de “nós”- como ela nomeava nossa relação-. E quanto mais Amanda sumia, mais Dani aparecia lá em casa, com seus livros de poesia em papel jornal, suaxxss teoriassxxx sobre amorrr livre temperados com esses e xis do seu carioquês tão particular. Perfumando a casa, incendiando em mim desejos levinhos e anticristãos, ela me tirava de órbita.

Dani estava na minha. Duas gatas de 23 na minha. A época, meus 18 anos já tinham chegado, assim como a carteira de motorista provisória. Convenci meus pais a alugarem dois cômodos no Alto do Ipiranga em meu nome. Com a condição de que eu faria visitas semanais e que faria as três refeições todos os dias.

Numa dessas semanas de prova final, quando todo mundo sumia do bar e da vida, Dani apareceu lá em casa com sua mini saia e sua cor desbotada pelos cinzentos ares de Julho.  Amanda já não dava notícias há umas 3 semanas. Não atendia o telefone, e quando atendia, emergia um “Sorry baby, estou quase louca pra conseguir entregar todas essas encomendas de vestidos... Sabe como é, pagar as contas e tal”.

Dani, atirada no sofá, as pernas cruzadas. Sentei no chão, encostei a cabeça próximo as coxas. Senti os pelinhos descoloridos na minha barba. Ela desceu devagar, sua saia foi ficando pra trás. Puxo minha mão e colocou no seu joelho, tímida. Fiz cócegas na perna, gelei suas coxas. Guiou minha mão até encontrar o tecido azul piscina da calcinha. Sentou no chão e disse:
-Quero dar pra você.

Assim, de supetão, no meio da sala, com meus livros sobre processos econômicos enfeitando a mesinha. Assim, no meio do dia, enquanto os vizinhos lavavam quintais, compravam tomates para o almoço. Amanda já era. Esse pensamento se aproximava com vivacidade, flutuando na minha mente, enquanto Dani arrancava minha bermuda do Palmeiras, enquanto eu descobria que ela combinava sutiã de florezinhas com camisa de banda. E se esfregava no meu pau, beliscava meus quadris. Sem remorso, sem desculpas, sem rígidos códigos de ética sentimentais. Foi embora e não ligou. Foi embora e voltou outras vezes, sem tocar no assunto.

Claro que Amanda ficou sabendo. E quis entrar na brincadeira. Estava lendo um livro de uma psicóloga com linha de pesquisa oriental que dizia que o desapego do ego só viria através da libertação total dos sentidos e dos padrões mundanos. Alguns de nossos amigos se espantaram, outros acharam graça da experiência. Mas ninguém se arriscava a pedir o bilhete de entrada.

Não tinha crise, nem neura.  Até que um dia, um bilhete de Amanda denunciou que os meus dias de Baco estavam contados. Aquele “precisamos conversar”, clássico, bicudo, que chega chutando tudo com sua variedade de significados. Que atordoa pela ambiguidade. Podia ser um filho a caminho, um pedido pra assumir um namoro, briguinha por causa das cuecas espalhadas na casa dela, aquela conta que eu esqueci de pagar e que ela insistiu tanto. Podia ser um joguinho, uma surpresa pra gente transar na hora do almoço dela. Podia ser uma viagem pra Bagdá que ela ganhou numa promoção por e-mail. Podia ser Dani. Podia ser tudo.

Girei a maçaneta e: surpresa. Amanda espalhada no sofá que protagonizou minha estreia com Dani e Dani em pé, ao lado, olhando desinteressada pra uma janela quebrada. Amanda foi a primeira a falar:
-Que bom que você chegou cedo. Tenho só mais 20 minutos de almoço.
-E então?
Dani sentou ao lado de Amanda. Olhavam-se enviesadas. Pegaram-se na mão. Dani falou:
-Sssei lá, cara. Ax coisasxx andam complicadassx. Você é bonitinho e tal, trepa bem. Masxx...
-A Dani quer dizer que não rola mais. O problema não é você, somos nós. Tudo rola bem entre a gente, mas acontece que nós nos apaixonamos.
-To curtindo a Mandinha... e ela me curte também. É injusto jogarrr assxim com voxcê, gato.
-Mas ó, se precisar de uma amiga, de um conselho... e tal. Sabe como é, nos vemos por aí.
Eu disse “tudo bem” e “acontece, o amor é assim mesmo...”seguindo-as até a porta. Em cinco minutos ganhei duas ex lésbicas e uma puta dor de cabeça. Acho que posso tentar o Guinness, não?






Um comentário:

  1. Em alguns trechos me lembrou "Histórias de amor duram apenas 90 minutos". Muito bom,Nara! ;)

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"a palavra escrita permanece."