26.7.11

Garota dos cigarros


 

Olhou os pratos vazios sobre os móveis empoeirados. “de quem é a louça hoje?” pensou. As costas doíam. Mas não tanto quanto a voz de Holiday em seu ouvido. Era do tipo culta, tinha sempre um daqueles clássicos de capa vermelha, lançados pela Folha. Enchia a casa de livros e de fumaça dos cigarros baratos que comprava de um chinês que também lhe arranjava pilhas e chicletes.

Tinha celular e dois ternos novos, escuros que intercalava na pequena produtora onde editava comerciais de geléias e daqueles doces que podiam te matar como uma overdose. Não tinha namorado nem transas casuais, o último cara com quem repartiu uma conta de restaurante a tinha deixado faz pouco tempo, uns seis meses. Desde então, namorava seu eight roubado de alguma carga colombiana. Colombiana? Mas não eram os paraguaios que dominavam o mercado de contrabando? Não interessava. Aquele órgão que aspirava a morte 
lenta, intercalada com uns pileques de vez em quando, não se interessava pelo veneno que o corrompia.
Saia sempre as sete em ponto e voltava as outras sete também. Morava com uma colega do trabalho numa quitinete apertada. A única regra da casa era de não trazer caras sem aviso prévio. A outra garota não fazia barulhos, acreditava que havia barulho demais dentro dela própria. E assim, formavam aquela dualidade, sem barulhos, sem conversas, tarefas divididas naturalmente, sem discussões. Só cigarros, inquietações internas, livros de capa vermelha. Cotidiano.

Até que nossa garota eight, foi perdendo a força. Mal se levantava para pegar metrô, faltava nas edições, até que foi dispensada. Não pagava as contas. A colega segurou a barra, agüentaria o aluguel até quando a outra melhorasse. Não sabiam o que ela tinha. Sabiam que não tinha seguro, consulta num hospital público, só daqui um mês, obrigada, volte sempre.

 A colega iria levá-la ao pai, clínico geral, quem sabe com uma receita, aquela doença súbita desaparecesse. “te busco a noite, se apronte” disse a garota de alma inquietante. Acho que nunca falaram-se tanto na vida. E voltou para buscar. Mas só conseguiu encontrar as janelas abertas, a colega estirada na cama. Não respirava. Nos dedos, o cigarro. Apagando-se. Olhou no rosto gelado da menina que terminou sem motivo. Pensou na vida, nas inquietações, família, essas coisas que nos lembramos quando a morte nos dá um sopro. Olhou mais um pouco. Tirou o cigarro entrelaçado dos dedos dela. Apagou-se.


Nara Gonçalves  

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